Todo mundo sabe que existe uma treta entre Brasil e EUA sobre a questão de quem teria inventado o famigerado avião, se nós brasileiros com Santos Dumont ou eles com os irmãos Wright. A discussão não é fácil: eles dizem que voaram primeiro, a gente replica que eles estavam usando uma catapulta, eles treplicam dizendo outra coisa e assim por diante (mais sobre a questão, neste post).

Mal sabem os brasileiros, mas dentre as invenções que mudaram o mundo não foi só o avião que nos foi negada a paternidade. Temos uma outra ainda mais importante e que, aliás, podemos reivindicar até com mais facilidade, pena que ninguém sabe disso.

Ou melhor, quase ninguém sabe disso. O post de hoje foi pedido por vários leitores aqui do Oficina que já tinham conhecimento dessa história e sabiam que o personagem era digno de um conteúdo caprichado.

E se você for um dos que não sabia até disso até agora, não se preocupe. Apenas relaxe, leia o post com atenção e depois saia compartilhando com todo mundo, contando essa história adiante e assim vamos tentar tomar um pouquinho do que é nosso: a invenção da transmissão de som sem fio.

Um padre inventor 

Pode parece nome de carro antigo, mas nosso ilustre desconhecido chama-se Roberto Landell de Moura, um cara nascido em Porto Alegre em 1861 e, que, embora tenha sido ordenadao e usado a batina pela vida inteirinha, gostava muito mais de se dedicar à ciência do que ao sacerdócio, fato que, inclusive, lhe arranjou certas rusgas nas paróquias da vida.

Como toda pessoa do século XIX que tinha condições, tempo e dinheiro para estudar, Landell de Moura nasceu em uma família abastada com tradição tanto pelo lado do pai como da mãe. Com a ajuda das melhores escolas, aprendeu francês e alemão fluente antes dos 15 anos, e, segundo esta pesquisa, aos 16 anos já tinha reproduzido uma versão de telefone. Se você fizer as contas vai ver que isso dá só 1 ano após Grahan Bell. 

Após os estudos iniciais no sul, mudou-se para o Rio de Janeiro a fim de continuar a instrução quando seu irmão o convenceu de ir para Roma estudar com o objetivo de se tornar padre.

Assim, em 1886 ele era ordenado padre celebrando sua primeira missa logo no dia da "colação de grau religiosa". Voltou imediatamente ao Brasil, mais especificamente ao Rio, onde passaria um período breve, mas suficiente conhecer e conversar com o maior incentivador da ciência de todo o reino: O imperador Pedro II, que como ele próprio dizia "preferia ter sido professor a imperador".

Voltou para o Rio Grande do Sul menos de 1 mês depois de aportar no Rio de Janeiro e cerca de em 1 ano pegou a estrada novamente, dessa vez para o estado de São Paulo. Nessas idas e vindas seu interesse e dedicação pela ciência começava a se tornar notório e reprovável, já que a pesquisa científica não era bem vista pela religião católica.

Menos religião Mais invenção

Ordenado há poucos anos ele ainda estava em seus anos iniciais de batina quando as invenções começaram a surgir. Seus primeiros empregos como religioso eram basicamente serviços administrativos em pequenas paróquias, o que lhe garantiam tempo suficiente para seguir estudando nas horas vagas. O transistor sem fio que deu início a tudo e que já era capaz de enviar mensagens teria sido construído em 1892, bem antes de Guglielmo Marconi - o inventor reconhecido da transmissão a rádio - ter tido a mesma ideia na Itália (mais a frente você irá conferir uma sessão inteira sobre essa disputa).

Replica do 1º rádio
RÉPLICA do 1º rádio criado por ele

Entre 1893 e 94 ele teria feito a primeira transmissão pública de som por ondas de rádio, anos a frente de Reginald Fessenden, a quem é creditada a criação (também falaremos dele mais a frente). A distância entre os pontos inicial e final da transmissão foi de cerca de 8 quilômetros, mais precisamente do alto da Avenida Paulista até o Alto de Santana, onde ele comandava uma igreja. 

O problema é que por medo de represálias dos superiores ou por própria falta de interesse, Landell não costumava registrar nem fazia questão de testemunhas ou divulgação nestes seus primeiros experimentos. Isso é o que dificulta a identificação do brasileiro como criador: Tudo que se sabe desses testes e dessa época não passa de relatos imprecisos.

O primeiro relato crível e comprovável dos feitos de Landell veio somente em 1899, quando o Jornal do Commercio noticiou no dia 14 de junho

Nas diversas experiências executadas recentemente notou o inteligente inventor, que a zona que à mercê das vibrações do éter percorre o som articulado, se vai alargando à medida que se aproxima do receptor, de modo que, colocando-se vários desses receptores dentro do mesmo campo de recepção, alguns metros separados uns dos outros, todos eles recebem ao mesmo tempo com a mesma clareza a palavra transmitida. Deste resultado, que se saiba, não o obteve sábio algum, nem no velho nem no novo mundo, cabe ao padre Landell toda a glória da invenção. Para tal alcançar não se pense que o infatigável homem de ciência foi de um salto, há muitos anos que faz experiências e estuda metodicamente, entregando-se inteiramente à construção do triunfo que acaba de conseguir, sujeito por certo às leis da mais esquisita precisão, das quais fez nascer o seu pequeno aparelho transmissor e o seu pequeníssimo receptor.

Segundo o jornal, "há muitos anos" que o padre estava atrás de sua invenção, porém, sem um registro detalhado de quando seria esse tal ano fica difícil defender o homem. A primeira demonstração pública da sua criação só aconteceria quase 1 ano exato após a publicação da nota acima, no dia 3 de junho, quando para uma plateia de políticos, empresários, populares e até o cônsul britânico ele refez o procedimento.

O que era para ter se convertido em um enorme sucesso tomou caminhos trágicos para ele. No dia seguinte à demonstração pública sua oficina foi invadida por fiés fervorosos que não aceitavam um padre fazendo braxarias deste tipo. Em um surto de religião loucura eles destruíram o que Landell tinha inventado até ali. 

Ao menos a apresentação serviu para que ele conseguisse sua primeira patente emitida no ano seguinte: "aparelho destinado à transmissão fonética à distância, com fio ou sem fio, através do espaço, da terra e do elemento aquoso" de acordo com os termos técnicos do registro.

Com as coisas complicadas por aqui ele resolveu sair em uma excursão científica pelos EUA e alguns países da europa (somente após conseguir a autorização da igreja, é claro) para ver se teria uma maior receptividade por lá.

Quando chegou nos EUA ele foi contaminado pelo espírito inventivo que estava rolando por lá. Imediatamente ele resolve abrir um labotarório de pesquisas em Nova Iorque onde iria residir por 4 anos. A ideia era conseguir uma patente e registrar a invenção também nos Estados Unidos, porém o departamento de patentes americano exigia um protótipo funcional para efetuar o registro, coisa que ele não havia levado na bagagem. Sabendo que isso não ia acontecer da noite para o dia ele começou a construir seus modelos o quanto antes.

Enquanto isso sua estada nos EUA teve um breve momento de euforia causada pela chegada do inventor, tanto que ele foi personagem de alguns jornais em matérias bastante elogiosas. Parecia que as coisas estavam começando a se ajeitar para ele.

Notícia do The New Tork Harald sobre seus feitos
Notícia do The New Tork Harald sobre seus feitos

E estavam mesmo. Com os seus 15 minutos de fama e sua ideia repercutindo por todo o país ele foi procurado diversas vezes por empresários americanos para que vendesse os direitos de exploração comercial da invenção. A resposta dele, no entanto, era sempre a mesma: Um grande "não".

Segundo o próprio:

os inventos já não mais me pertencem. Por mercê de Deus, sou apenas o depositário deles. Vou levá-los para minha Pátria, o Brasil, a quem compete entregá-los à humanidade

Ele estava contando com o a ajuda do Brasil para comercializá-lo uhuhehuehuehuehu Primeiro e grande erro, meu amiguinho.

Enquanto ele se iludia de que aqui teria o apoio necessário, em 1904, finalmente, suas patentes em território norte-americano foram emitidas. Um total de 3 delas:

Patente americana do telefone sem fio
Patente americana do telefone sem fio

Ou seja, um brasileiro é o inventor do telefone sem fio com patente nos Estados Unidos e tudo mais. E não estamos falando da brincadeira do telefone sem fio, não, do aparelho mesmo que transmite e recebe voz sem a necessidade de um cabo entre eles. Porém, a decisão do que fazer com essas patentes não foi muito sábia como a gente já sabe.

Sua estadia nos EUA foi muito produtiva. Consta que ele teria continuado suas pesquisas e chegado ao controle remoto, ao teletipo e a uma tecnologia de transmissão de imagens à distância, algo como um bisavó da televisão, porém, ele ainda tinha o péssimo hábito de não registrar formalmente seus estudos.

O segundo erro dele foi voltar ao Brasil para assumir a paróquia de Botucatu e continuar na vida religiosa. Embora tentasse dar seguimento às suas pesquisas solicitandodo financiamento diretamente com os deputados do estado de São Paulo tudo o que ele conseguia era o "não". Assim as suas ideias tiveram de ser arquivadas por falta de grana.

Em uma última medida ele suplicou ao então presidente Rodrigues Alves que lhe disponibilizasse 2 navios da marinha. Sua ideia era estabelecer uma comunicação entre eles e provar que o investimento em suas pesquisas era necessário. Seu pedido nunca chegou diretamente ao presidente, já que quando perguntado sobre a qual distância planejava deixar os navios ele respondeu da seguinte maneira:

Coloquem-nos na maior distância possível, pois esse invento um dia permitirá até conversas interplanetárias

A frase pegou mal e um assessor descreveu assim mensagem ao presidente:

Excelência, o tal padre é positivamente maluco. Imagina que ele chegou até a falar-me na possibilidade de conversar um dia, com outros mundos

Com esse superapoio da assessoria seu pedido foi negado e a igreja viu a oportunidade ideal para dar um ultimato ao padre inventor para que parasse com essas bobagens de ciência. Enfurecido (e provavelmente bastante arrependido de não ter ficado nos EUA com o apoio garantido à sua causa), reza a lenda que ele destruiu vários de seus protótipos e modelos funcionais.

Voltaria em 1908 ao Rio Grande do Sul onde ficaria em funções eclesiásticas até 1928, ano de seu falecimento por tuberculose. No fim de sua vida quando fora perguntado por que não havia feito propaganda de seus inventos ou até mesmo abandonado a vida religiosa para viver como cientista ele disse que não podia. Primeio porque enquanto religioso não lhe era permitido expor-se como inventor e, abandonar o hábito, que era o maior motivo de orgulho para os seus pais, jamais.

Embora seja conhecido (ou nem tanto) pelas pesquisas com radiofrequências ele pesquisou e produziu material sobre física, psicologia, parapsicologias e até homeopatia, que chegou a lecionar brevemente em Porto Alegre.

Marconi X Landell (x Tesla ??? {x Fessenden???})

Antes de entender qual a treta da vez é preciso ver como estavam as coisas naquele período que ficou conhecido como Belle Époque. Primeiro tenha em mente que o mundo florescia em questões de ciência e sociedade enquanto caras como Tesla, Marie Curie, Ford, Santos Dumont e tantos outros empenhavam-se para criar muitas das coisas das quais dependemos hoje. Assim é difícil dizer que alguém inventou alguma coisa sozinho.

Os próprios avanços de Landell (ou Marconi) são resultado de pesquisas e mais pesquisas e nem um nem outro pode ser considerado o "pai solteiro" do rádio. Maxwell, por exemplo, já vinha pesquisando as ondas eletromagnéticas desde 1860, já quanto a primeira demonstração das mesmas a honra coube a Heinrich Hertz, em 1887 (medir a frequência das ondas em "hertz" não é uma simples coincidência).

Aliás, se você colocar no Google "Inventor do rádio" ele dá como resposta nada mais nada menos do que 2 dezenas de caras que foram importantes para o produto final.

Inventores que contribuíram de alguma maneira para o rádio
Inventores que contribuíram de alguma maneira para o rádio

O próprio Tesla patenteou e registrou, em 1896, diagramas muito similares ao que Marconi usaria pouco tempo depois para criar a sua versão do rádio. Aliás, nosso padre brasileiro, por causa de tudo o que vimos aqui, não é nem um pouco reconhecido lá fora como um dos possíveis pioneiros pelo invento. Quem disputa o título de criador do rádio é Marconi x Tesla.

Segundo Tesla, Marconi havia usado 17 de suas patentes para criar a poderosa indústria do rádio que ele desenvolveu após ser reconhecido mundialmente como o legítimo inventor. Tesla, ao invés de ficar chateado, disse "Marconi é um bom amigo. Deixem-no continuar. Ele está usando 17 das minhas patentes". Então tá.

Mas, voltando ao brasileiro, seus primeiros testes de um produto final e funcional, embora não documentados, datam de 1893, 2 anos antes do italiano mostrar publicamente o telégrafo sem fio e 3 anos antes dele patentear o mesmo. Nosso padre só faria uma primeira demonstração com plateia em 1900, 1 anos antes de conseguir sua patente.

Quando nos EUA Landell teve um grande fã, o escritor irlandês J.C. Oakenfull que escreveu diversos livros sobre o Brasil. Mais de um desses livros foi dedicado a dar reconhecimento ao padre como inventor do Rádio. As obras alcançaram boa vendagem em locais como Estados Unidos, Canadá, Suíça, Austrália, entre outros.

Mas nem essa breve fama foi suficiente para dar algum merecimento maior para ele enquanto Marconi, no final das contas, acabaria recebendo um Nobel em física, em 1909, pelas suas "contribuições para o desenvolvimento da telegrafia sem fio".

O "pior de tudo" é que enquanto o italiano foi laureado por ter transmitido sinais elétricos via ondas de rádio Landell de Moura não foi reconhecido mesmo estando muito a frente e transmitindo além dos sinais elétricos, som, e não só por ondas de rádio, mas também ondas de luz. Que embuste.

Última foto de Landell de Moura
Última foto de Landell de Moura

Ok, nos tiraram o título de criador do rádio, mas pelo menos teríamos o titulo de ser os primeiros a fazer as adaptações necessárias para conseguir transmitir voz (lembre-se que o falsário do Marconi só transmitia sinais elétricos e código Morse) naquela apresentação pública de 3 de junho de 1900, certo? Errado.

Os gringos são tão trouxas que teimam em reconhecer o evento e atribuem o feito de enviar voz pela primeira vez ao canadense Reginald Fessenden que fez isso em 24 de dezembro de 1900, mais de 6 meses atrasados.

Em 2012 ele foi inserido no rol de heróis da pátria, lista restrita e deveras honrada. Mas o Nobel para o Brasil que é bom não volta mais. Fazer o que né? Mas se você compartilhar com seus amigos e com isso mais alguém começar a pensar e discutir essa questão, então já vai ter valido a pena.

Enquanto isso fiquem com a nota (um pouco romantizada, é verdade, mas ainda sim válida) do engenheiro espanhol Josep Rodrigo Botet publicada em um jornal espanhol

O mérito cresce de ponto, em se considerando que os inventores europeus e americanos dispõem de operários mecânicos inteligentíssimos e de fábricas e laboratórios onde escolher as peças que a feitura de seus mecanismos requer. O pe. Landell tem que conceber e executar ele mesmo os aparelhos, sendo a um só tempo o sábio que inventa, o engenheiro que calcula e o operário que forja e ajusta todas as peças de complicadíssimos mecanismos. [...] Mas acontece que o humilde sacerdote se fecha em sua modéstia habitual em vez de dormir sobre os louros. Os poucos amigos e admiradores que tem a seu lado são capazes de compreender o sábio e avaliar o valor de seus inventos

Ironia foi que a última vez que se ouviu a voz do Padre dos Balões foi através de uma transmissão a rádio, sistema criado por outro padre há mais de 100 anos =D

Fontes: 1, 2, 3, 4, 5, 6