No final do ano passado foi anunciado um projeto inédito até então no Brasil, ou pelo menos nessa escala. 15 mil brasileiros terão seus DNA estudados e mapeados, colocando o Brasil no mapa global de estudos genômicos. O projeto se chama DNA do Brasil, e tem o objetivo de prevenir e tratar doenças com base em conhecimento mais detalhado.

Fazem parte desse projeto funcionários públicos que, por sua vez, também são parte do projeto Elsa (Estudo longitudinal de saúde do adulto), criado em 2008 para acompanhar sua saúde e envelhecimento. Eles se dividem em seis cidades e universidades do Brasil [São Paulo (USP), Belo Horizonte (UFMG), Porto Alegre (UFRGS), Salvador (UFBA), Rio de Janeiro (Fiocruz) e Vitória (UFES)], e entre idades de 35 a 74 anos.

O Elsa investiga fatores genéticos para doenças crônicas durante o período de 20 anos na vida de um adulto. Só esse projeto já recebeu 60 milhões de reais dos Ministérios da Saúde e Ciência.

A investigação acontece apenas com grupos selecionados de funcionários públicos por uma razão prática: eles tendem a permanecer na mesma cidade por esses 20 anos necessários para o estudo. Mesmo sem uma representação própria da sociedade como um todos e suas classes sociais e etnias, essa seleção foi a maneira mais viável de implementar um projeto de tão a longo prazo. Doenças crônicas demoram anos para aparecer, podendo até mesmo não se manifestar ao longo de toda a vida mesmo com os genes presentes. Todo ano, somente 0.8% de funcionários públicos se mudam de cidade, em comparação a 10% da população geral, segundo Paulo Lotufo, um coordenador do Elsa, contou à Folha de S.Paulo.

O estudo paralelo que agora acontece com esse mesmo grupo se dá pelo cruzamento de dados do genoma e dados clínicos correspondentes. Assim, alterações do DNA podem ser identificada e relacionadas com surgimentos de doenças e sintomas que abrangem desde diabetes até mesmo um infarto.

Lygia V. Pereira, chefe do LaNCE USP - Canal USP
Lygia V. Pereira, chefe do LaNCE USP - Canal USP

Genoma?

Mas afinal, o que é o genoma? Se trata de um conjunto de material genético que caracteriza nossa aparência, forma e vida. Isso inclui também propensões para alergias, por exemplo, ou infecções, deficiências e etc. Sabendo dessas fatores, tratamentos para esse tipo de complicações podem ser muito melhor direcionados e mais efetivos.

Um projeto como o DNA do Brasil não apenas leva o Brasil para um lugar de mais destaque na comunidade científica global como tem um verdadeiro potencial pela histórica miscigenação do povo brasileiro. Pouquíssimos lugares têm DNA tão misturado e ao longo de séculos em sua população. Europeus, asiáticos, africanos e indígenas formam nossa população, trazendo uma grande vantagem para estudos de genoma.

Até hoje, 80% dos estudos similares de genoma tem a Europa como base. Agora o Brasil deve trazer uma representação latina e negra para a ciência. Inclusive, existem doenças que estão ligadas a algumas origens genéticas, sejam europeias (das quais já há estudos sobre) ou até mesmo indígenas. Ataxias, por exemplo, são um tipo de doença degenerativa ligada aos indígenas, enquanto tendências à pressão alta e câncer de pulmão estão ligadas ao DNA originário africano.

Fazer ciência é difícil

Mesmo com tamanho potencial e importância, adquirir verba para um projeto desse sempre possui empecilhos. Mesmo sendo de interesse, a indústria farmacêutica não cedeu investimentos ao DNA Brasil.

Sem uma análise meticulosa do mosaico que é o DNA do brasileiro, especificidades da população acabam não sendo levadas em conta na investigação de doenças e podem resultar em tratamentos demasiadamente tóxicos ou ineficazes para essa população.

Apesar desse apelo, não foi fácil conseguir recursos para o projeto, segundo Pereira. Apesar de mostrar algum interesse pela ideia, a indústria farmacêutica nacional não investiu nela. Até o momento, a empresa de medicina diagnóstica Dasa se comprometeu a pagar 3.000 sequenciamentos além de um investimento de 6 milhões de reais em um sequenciador genético. A fabricante desse equipamento, a Illumina, se encarregou dos insumos para o processamento das amostras.

Porém, ainda restam 12 mil sequenciamentos sem financiamento. Cada um desses testes custa em torno de 2.500 reais e depende de novos parceiros para acontecer. Há, porém, mais um parceiro, o Google, que disponibiliza um servidor Google Cloud para o armazenamento dos dados, onde cada genoma sequenciado ocupa 500 gigas.

Um armazenamento em nuvem ainda permite manter um banco de dados para futuras pesquisas e estudos de DNA, além de preservar os dados originais sem necessidade de deletar nada. Esses dados, porém, são privados e nem a Dasa e nem o Google terão acesso a eles. Novos projetos que queiram acessar as informações deverão submeter sua proposta para análise.

"É muito positivo que atores do setor privado tenham decidido investir e interagir nessa área. É preciso trazer mais know-how de genômica para o Brasil. É bom para a economia e para o desenvolvimento tecnológico", diz Eduardo Tarazona-Santos à Folha de S.Paulo, professor da UFMG responsável pela análise de dados genéticos de 6.487 pessoas em outros projetos.

O Brasil possui um imenso potencial científico, provado a cada novo projeto pioneiro que sai daqui para o exterior. Fazer ciência por aqui, porém, segue sendo muito difícil. Existe de fato pouco incentivo privado e público, pouca estrutura e pouco interesse da população como um todo. Porém, há coisas que só podem ser feitas aqui. O "DNA do Brasil" é um deles, que inclusive tem a capacidade de chamar investimento externo. O protagonismo, entretanto, sempre deve ser nosso.

Fontes: Folha de S.Paulo e Canal USP